Esta entrevista começa com um
sublinhado. Carles Lladó é o “o mais veterano dos veteranos da
Península Ibérica”, mas é também “o mais veterano dos
veteranos do Sul da Europa”. É ele próprio quem faz questão de
me corrigir, colocando os pontos nos ii no início duma entrevista
que decorreu em tom jovial e que vinca um dos mais fortes traços do
seu caráter: a verdade. E foi com verdade que respondeu às minhas
questões e que hoje se apresenta aos leitores da Inside
Orienteering.
A manhã abre-se em tons de cinza. A
brisa marinha sopra com força e ali, nas Dunas de Mira, junto à
Costa Atlântica, o mês de Fevereiro faz questão de mostrar que o
Inverno português pode não ser tão macio quanto se apregoa. A
Arena do Portugal O' Meeting começa a encher-se quando me cruzo com
ele. Desde 2012 que não o via e perguntava-me se se teria retirado
das lides da Orientação. Mas não. Aí estava ele, preparado para
mais um grande evento, um ar respeitável sob uma barba feita de
branco, um olhar de menino atento a tudo o que se vai passando à sua
volta. Após o abraço do reencontro e da correção já enunciada, a
pergunta surge com naturalidade. Onde é que, aos 84 anos, se vai
buscar energia para prosseguir com esta atividade toda e continuar a
fazer Orientação? Carles não perde tempo a revelar o segredo:
“Creio que isto é devido ao facto de ter praticado atividade
física durante toda a minha vida e de conseguir manter os neurónios
ativos.”
Carles Lladó y Badia nasceu em
Igualada, Anoia, em 1931. Licenciado em Arquitetura e Urbanista
diplomado em Instalações Desportivas, foi desde sempre uma figura
multifacetada, repartindo a atividade profissional na área da
escultura, desenho de jóias e industrial com a prática e promoção
do desporto, especialmente da Orientação, e também com o ativismo
político independentista. Iniciou a prática desportiva no Club
Atlètic d'Igualada e, como Veterano, foi Campeão de Espanha de 110
metros barreiras e de Triplo Salto. Firme defensor do reconhecimento
internacional do desporto catalão, foi um dos impulsionadores da
Associação para a Delegação Olímpica da Catalunha, entidade que
reclamava o reconhecimento do Comité Olímpico da Catalunha com
vista à participação dos desportistas catalães nos Jogos
Olímpicos de Barcelona, em 1992. Em 2003 foi galardoado com a
medalha da Generalitat pelos seus contributos para a história
desportiva da Catalunha.
Orientista aos 58 anos
A Orientação surgiria apenas aos 58
anos de idade. “Tenho pena por ter sido numa idade já muita tardia
e, além do mais, só posso competir com pessoas da minha idade em
grandes eventos internacionais, onde o meu escalão está
contemplado. Nas outras provas sou obrigado a correr, por vezes, com
pessoas a quem levo trinta anos de vantagem... ou de desvantagem”,
refere, acompanhando esta última observação com uma sonora
gargalhada. Mas esse é precisamente um dos motivos que o traz a
Portugal ano após ano, a participar no Portugal O' Meeting. Mas não
o único. Deixemos que ele próprio explique: “Eu pertenço a um
clube, o Club Orientació Catalunya [COC], que está irmanado com um
clube português, o Clube de Orientação do Centro [COC]. Este é um
clube que colhe a minha maior simpatia e respeito e que está
implementado numa região cujos terrenos são muito no género
destes, terrenos que gosto muito por serem mais macios para correr”,
explica.
Cabe aqui dizer que Carles Lladó não
é “apenas” mais um membro do Club Orientació Catalunya. Ele é
o seu fundador, tendo também fundado, em 1988, a Federação de
Orientação da Catalunha e sido membro do Conselho Diretivo da União
das Federações Desportivas da Catalunha entre 1992 e 1996. No ano
de 2000, a Federação de Orientação da Catalunha instituiu um
Prémio anual de Orientação com o seu nome, Troféu Carles Lladó.
“O esforço valeu a pena”
- Como é que se sente no meio desta
juventude?
“Foi há sensivelmente 27 anos que
arrancámos com a Orientação na Catalunha e fizemo-lo a partir do
zero. Hoje é uma satisfação ir às provas e ver como as coisas
evoluiram. Ver o enorme grupo de crianças com 12 ou 14 anos que
pratica ativa e regularmente esta modalidade dá-me um enorme prazer
e leva-me a pensar que o esforço valeu a pena.”
- Considera-se uma referência, um
modelo para os mais novos?
“Não um modelo mas uma peça mais –
juntamente com a minha mulher e outros companheiros – no processo
de construção da Orientação na Catalunha. É isto que
verdadeiramente importa, do ponto de vista pessoal.”
Coisas boas e coisas más
Em quase três décadas de Orientação,
entre as muitas experiências vividas por Carles Lladó, uma há que
elege acima de todas as outras e essa tem a ver com a percepção de
que a Orientação na Catalunha está em marcha. “Sem querer
parecer pretensioso nas minhas palavras, isto é algo que me deixa
particularmente orgulhoso porque é obra minha. Hoje há gente que eu
não conheço e há gente que não me conhece e isso é muito bom.”
Mas nem tudo são rosas e também há más experiências, uma das
quais bem recente e que teve a ver com o facto de se ver obrigado a
parar com a atividade física devido a uma síncope cerebral, em
Fevereiro do ano passado. “Estive oito dias em estado de coma e
acabei por recuperar, tomando comprimidos “a torto e a direito”,
recorda. E acrescenta: “Hoje já começo a sentir-me um pouco
melhor, mas é difícil suportar uma paragem tão longa, sobretudo
porque sinto que, antes deste episódio, estava um pouco acima das
minhas capacidades para a minha idade, quer do ponto de vista físico,
quer mental, e agora sinto que estou abaixo delas.”
No ano passado, o World of O agraciou
um Veterano de 96 anos, Rune Haraldsson, com o prémio “The
Orienteering Achievment 2015”. Carles Lladó apressa-se a
congratular-se com esse facto, afirmando ver nessa distinção “um
prémio a todos os Veteranos e um exemplo para toda a comunidade da
Orientação. Não posso esquecer-me de ter visto, em Múrcia, nos
Mundiais de Veteranos de 1996, um atleta a correr pela floresta,
saltando por cima de troncos e descendo por reentrâncias enormes.
Tinha 95 anos e causou-me uma profunda admiração. Acho que este
prémio é inteiramente justo e que tem um enorme alcance. Eu não
sei se conseguirei chegar aos 96 anos (risos).”
Orientação e olimpismo
Vivendo e sentindo intensamente a
Orientação, Carles considera que a modalidade caminha no rumo
certo, mas observa: “Aquilo que recomendaria é que se continuassem
a fazer todos os esforços no sentido de tornar a Orientação uma
modalidade olímpica. Talvez ainda não estejam reunidas todas as
condições para podermos ser aceites, mas seria fabuloso que isso
pudesse ser uma realidade no futuro.” Carles recorda a conversa
tida com Juan Antonio Samaranch, onde o ex-Presidente do Comité
Olímpico Internacional concordou que a Orientação tem, do ponto de
vista do espetáculo, com uma boa produção televisiva, um potencial
superior a muitos outros desportos. “E é por aí que temos que
pegar”, conclui.
Aos “jovens” com 57 anos, ou seja,
a todos aqueles que têm a mesma idade que tinha quando começou,
Carles Lladó adverte para não ficarem em casa a olhar para a
televisão, podendo a Orientação ser a grande alternativa a uma
vida sedentária: “Muitos deles levam hoje 57 anos de vantagem em
relação a mim, quando comecei, porque nessa altura eu não sabia
absolutamente nada do que era a Orientação e hoje, felizmente, as
pessoas conhecem o nosso desporto. Mas o meu conselho é que sejam
mais ativos e que saiam de casa, não apenas para ir ao parque ver os
outros jogar a petanca. Que sejam mais ativos e que se aventurem a
fazer Orientação. Eu faço, a minha mulher com quase 80 anos faz
também e acho que todos podemos fazer. É um desporto fabuloso,
muito formativo, adequado a todas as idades e onde o companheirismo
entre todos é excelente e algo que não se encontra com facilidade
nos outros desportos”, afirma. Quanto à sua pessoa, enquanto
orientista, o catalão não tem dúvidas: “Enquanto o corpo e a
mente aguentarem, estarei por aqui!”
Testemunhos
“Durante muitos anos, viajámos
com os nossos pais numa pequena furgoneta por essa Europa fora,
participando nas provas de Orientação que tinham lugar durante o
Verão. Carles e a sua mulher, Tere, também tinham uma furgoneta
e coincidíamos em muitas dessas competições. Num desses Verões,
corria eu ainda no escalão M12, recordo que Carles me ensinou, na
praia, a interpretar as curvas de nível. Construímos “montanhas”
com a areia da praia e ele, com o dedo, desenhava as curvas de
nível. E assim, olhando de cima, conseguiu ver as mesmas formas
que eram tão difícieis de perceber no mapa.
Ainda recordamos, com outros amigos,
que muitos de nós começámos a praticar Orientação graças às
provas que ele organizava. Os jovens eram uma presença constante!
No início, na Catalunha, eramos as únicas crianças, mas graças
ao seu esforço mais e mais crianças e jovens se foram juntando a
nós. Inclusivamente, houve um ano em que Carles organizou uma
Colónias de Férias de Verão de Orientação. Para mim foi a
maior alegria, poder fazer Orientação com tantas outras
crianças!”
Pol Ràfols
“Para mim, Carles foi e é um
referencial em muitos aspetos da minha vida. Praticou Atletismo
desde muito jovem, viajou pelo mundo inteiro duma forma muito
humilde, é um homem muito exigente e muitas vezes crítico. Posso
afirmar que foi graças a ele que a minha existência mudou, visto
termos conhecido a Orientação e isso ser hoje um dos aspetos
mais importantes da minha vida.”
Biel Ràfols
“Há já algum tempo que Carles
insistia que tínhamos de experimentar essa coisa da Orientação.
Até que um dia os meus pais se encheram de coragem e nos levaram
até um pequeno lugar próximo de Barcelona. Eu fui com Tere e
deram-me um mapa para que fosse olhando. Coloquei o dedo em cima e
fui seguindo o percurso. Quando chegámos, disse-me: “Fazes isto
muito bem!” E assim começou a história.”
Ona Ràfols
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